Fiéis
que professam a fé católica, homenageiam São Sebastião, que na umbanda recebe o
nome de Oxóssi; porém, em Pirabas a data é especialmente celebrada ao mítico Rei
Sabá, o protetor dos encantados e guardião da praia do castelo, na ilha da
Fortaleza.
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Praia do Castelo, Ilha da Fortaleza, encantos e encantados. |
Separados
por guerras e intolerâncias dos tempos medievais entre europeus cristãos e
sarracenos pela conquista da terra santa; pelas arbitrariedades cometidas por
colonizadores europeus contra negros cativos de mãe África e índios, é nas
praias do Grão - Pará e Maranhão que a fé desses povos se encontram. Coube a
ilha da Fortaleza, em São João de Pirabas unir todas as matizes em celebração a
paz entre os povos.
O sagrado
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Pedra do rei Sabá recebe orações e oferendas de afrorreligiosos |
Às
vésperas do dia em que se celebra o dia nacional de combate a intolerância
religiosa, pelo terceiro ano consecutivo, a comunidade umbandista e
simpatizantes das religiões afro amazônidas saíram em procissão pelas ruas da
cidade, no final da tarde de sábado (19), levando num pequeno barco a imagem do
santo mártir católico - São Sebastião, em direção a igreja Matriz, onde os
religiosos participaram de uma missa ecumênica, celebrada pelo pároco local.
Assim
que a missa foi encerrada, os afrorreligiosos participaram da tradicional “roda
de tambores”, realizado no complexo cultural Maria Pajé, momento em que todos
os terreiros que prestigiam a festa, vindo das cidades circunvizinhas e de outras
regiões do país se confraternizam através dos cantos, danças e invocações aos
seres encantados.
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Na areia da praia reúnem-se diferentes grupos de vertente afro |
Na
manhã de domingo (20), milhares de pessoas atravessaram o rio Pirabas em
direção à praia do Castelo, na ilha da Fortaleza, onde está localizado o
monumento místico ao Rei Sabá; uma pedra assentada em cima de uma plataforma de
concreto, que por sua vez está situada em cima de um platô de pedras cenozóicas
num sítio paleontológico, lugar de beleza exuberante onde acredita-se, tanto
por partes dos religiosos, quanto por parte dos nativos de que a pedra ali
esculpida pela natureza seja o “rei Sabá”, considerado o protetor dos
encantados na mitologia amazônida. Mas, também há quem defenda a versão de que a
pedra represente um rei africano, ou ainda, um guerreiro tupinambá.
Durante
as celebrações, muitas pessoas visitam não só a pedra do rei Sabá, mas também
prestam orações, danças e oferendas como frutas, peças de roupas, bombons,
bebidas e fumo as demais entidades da encantaria – Mariana, Jarina, Yemanjá e
Zé Raimundo; historicamente as duas primeiras representam a família de Turquia,
mas, que na encantaria foram aceitas como filhas do rei Sebastião, segundo a
tradição do tambor de mina, sendo essas duas entidades muito cultuadas pelos
visitantes das cidades do nordeste paraense. Na sequência Yemanjá a vertente
afro do candomblé yorubá e seu “zé” representando a encantaria cabocla.
Entidades que estão representadas em estátuas que compõem o complexo místico ao
rei Sabá.
O profano
Enquanto as celebrações aconteciam no complexo místico da pedra do rei Sabá, os visitantes também aproveitaram a opção do entretenimento com apresentações de grupos folclóricos de carimbó, música mecânica e competições esportivas como o futebol e a corrida de praia, além do banho de mar.
Rei Sabá ou São Sebastião?
Em
Pirabas a comunidade em geral na sua grande maioria não distingue as
personagens. Para muitos, o rei e o santo são as mesmas pessoas. E tudo fica
ainda mais confuso quando se fala que São Sabastião é Oxóssi na umbanda. Essa
mesclagem de elementos simbólicos e ritualísticos das religiões dos povos que
deram origem a sociedade amazônica, chamado de sincretismo religioso, acontece sem
que os nativos percebam.
Entre
os estudiosos da encantaria, a antropóloga Anaíza Vergolino em sua tese de
doutorado, afirma que no imaginário coletivo da população de Pirabas, encontrou
elementos nas narrativas de pescadores que remetem a pedra à figura de um rei.
Há narrativas extraordinárias de o um homem, vestido com armadura de guerreiro
militar que galopa em seu cavalo pelas areias da praia, para em seguida
desaparecer misteriosamente nas águas da baia, em frente à pedra mítica. Em outras
narrativas, há quem descreva a presença de um cão que sempre o acompanha nas
cavalgadas.
O
curioso é que esses pescadores e pessoas mais antigas não tem o conhecimento do
rei Sebastião histórico, o desejado herdeiro do trono português, pelo
contrário, até o confundem com o santo católico. Mas, ao descreverem as
aparições, logo se percebe que se trata da figura de um rei, do guerreiro
militar e não de outros personagens como o africano cativo ou o santo católico.
Sebastião, o monarca português, último da dinastia de Aviz, que morreu na
batalha de Alcacer-Quibir em 1578 no Marrocos era um guerreiro da ordem dos Cavaleiros
de Cristo, remanescente dos templários em Portugal.
Apesar
das semelhanças nas descrições físicas e nas indumentárias usadas pelo
personagem que acreditam ser o “rei Sabá” feitas pelos pescadores que
frequentam a praia do Castelo, na Ilha da Fortaleza, Anaíza Vergolino, não
encontrou no mesmo imaginário coletivo a fé de que esse rei regressará para
salvar a sua nação, como em alguns lugares do mundo de influência lusitana e
até mesmo no litoral do norte do Brasil, como acontece nas vizinhas praias de Maiandeua,
Algodoal e nos lençóis maranhenses. Fato que não tira a certeza da pesquisadora de
que a pedra existente na ilha da Fortaleza, o “rei Sabá” seja uma associação ao
monarca português, El Dom Sebastião, pois na região, Sabá é um tipo de redução
do nome próprio de Sebastião.
A
confusão se dá não apenas pelos elementos sincréticos, como também pelo nome
das personagens, que nasceram na mesma data. O nome do rei é uma homenagem ao
santo, mas são personagens que viveram em tempos distintos. El Dom Sebastião
(1578-1554) desapareceu no deserto dos Marrocos tentando reconquistar o território
ocupado pelos mouros no norte da África, antes pertencente aos cristãos, no
século XVI; enquanto que Sebastião (França, 256 d.C. – 286 d.C.),
o mártir, fora um soldado romano convertido ao cristianismo condenado à morte
pelo imperador Diocleciano no século III.
Com
a chegada dos negros escravos ao Grão Pará e Maranhão em 1755, impedidos de
cultuarem suas divindades, as entidades africanas foram camufladas
correspondendo a um santo católico. Oxóssi, então orixá de
contemplação, amante das artes e das coisas belas, assumiu a identidade de São
Sebastião no catolicismo romano.
Origem
Segundo
dirigentes da União Religiosa dos Cultos Afro Umbandistas do Brasil, no Pará –
URCABE, as manifestações onde está localizada a pedra mítica ao “rei Sabá”, já
acontecem há 107 anos. O historiador Gerson Santos, estudioso da temática, em
sua pesquisa bibliográfica, encontrou documentos de navegantes que relataram em seus diários de bordo a existência
de manifestações religiosas no mesmo local da praia do Castelo, ainda nos
tempos do Brasil colônia. Porém, ainda segundo o historiador, não se sabe que
divindade era cultuada, à época.
Mitos e lendas
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A pedra está em cima de um sítio paleontológico |
Entre
as lendas contadas na cidade, está a de um pescador que pediu ao rei Sabá obter
um produtiva pescaria, ofertando ao ser encantado o maior peixe capturado. No
regresso, com a pequena embarcação lotada de peixe, o pescador não cumpriu com
o prometido, sendo repreendido por um colega de pescaria que lhe contou o que
aconteceria se ele tentasse enganar o rei Sabá. Com o coração cheio de avareza,
o imprudente pescador não só negou oferecer o maior peixe como ainda zombou do
encantado.
A
viagem prosseguiu com a enchente da maré, quando repentinamente um forte vento
fez com que a canoa alagasse, pondo a perder toda a pescaria.
No
imaginário popular rei Sabá opera milagres como curas de enfermidades e também
puni quem pratica atos de desobediência no seu território encantado.
Geminiano
Fonseca, pescador aposentado (à época com 104 anos) afirma que em certa ocasião, um grupo de pescadores do Inajá
resolveu passar a noite em um rancho na praia do Castelo. Ao cair da noite, um
pequeno esquilo começou a pular de um lado para o outro no interior da cabana.
Um jovem pescador, incomodado com o animal, resolveu golpeá-lo mortalmente. Seu
companheiro mais experiente o repreendeu avisando que todos os animais da ilha
pertenciam ao rei Sabá, e que ele iria castiga-lo.
Geminiano
Fonseca, que era um garoto à época, lembra que não demorou muito para o castigo
vir. Assim que o pescador descartou o animal e deitou-se no assoalho do abrigo,
o inajauara foi acometido repentinamente por uma forte dor, vindo horas depois
a óbito, após ter sofrido com febre alta, dor de cabeça, vômito... "parecia
castigo mesmo", resumiu o centenário em entrevista concedida ao blog no ano de
2011.
A relevância cultural e
científica
Mitos
e lendas a parte, o dia 20 de janeiro abre o calendário cultural do município
de São João de Pirabas, tornando-se um centro de peregrinação para sacerdotes
das religiões afro-brasileiras, pesquisadores e acadêmicos, jornalistas e
simpatizantes.
A
lenda do rei Sabá está presente na cultura local nas mais diversas expressões artísticas,
seja na poesia, pintura, musica, dança etc... e vem cada vez mais chamando a
atenção de pesquisadores de várias áreas do conhecimento, inclusive de
estrangeiros, interessados em estudar as peculiaridades da manifestação
sebástica em Pirabas.
Entretanto,
toda essa repercussão ainda não despertou a atenção do poder público local para
tratar esse potencial natural, turístico e religioso como política pública que
gere trabalho e renda para a comunidade durante todo o ano, tendo a
manifestação dos cultos ao “rei Sabá” e demais entidades da encantaria como
vetor de desenvolvimento do turismo local.
Fotos: Walace Lopes