Um prelúdio para o Rei Sabá – o encantado e a
sua multiplicidade em São João de Pirabas, Pará
Por Hermes Veras NER/UFRGS
Leia na íntegra o trabalho apresentado pelo pesquisador Hermes
Veras ao núcleo de estudos religiosos – NER - da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul.
Pedra mística é constante tema de trabalhos acadêmicos Foto: Paulinho Pinheiro |
A cidade litorânea de São João de Pirabas é conhecida pela
geografia afro-brasileira como umas das três moradas do encantado Rei Sebastião
– comumente chamado pelas pessoas de Rei Sabá – na Amazônia (Maués, 2005). Não
é raro se ouvir falar de umas dessas outras regiões, talvez a mais famosa,
localizada na praia dos Lençóis, São Luís, Maranhão. Algumas pessoas que
frequentam os terreiros da cidade paraense dizem que Rei Sebastião não mora
mais na praia do Castelo, pertencente à ilha da Fortaleza que fica há aproximadamente
30 a 40 minutos de distância de barco com motor, via as águas do oceano
atlântico entrelaçadas com o rio Pirabas.
Há relatos de que a entidade tenha se
mudado para a sua morada maranhense por conta do descaso com o seu território,
este consiste em uma formação rochosa que se eleva nas praias do Castelo. No
lugar, uma pedra em especial se destaca, hoje já como um monumento, mas que
outrora se assemelhava a um homem sentado, principalmente para quem
tangenciasse o litoral. Por essa e outras razões, o Rei Sabá ficou conhecido e
cultuado entre os pescadores e habitantes da ilha pertencente ao município de
Pirabas (Silva, 2007). O que se sabe é que pelo menos há mais de 70 anos
acontece uma peregrinação fluvial-marítima, saindo de Pirabas até a praia do
Castelo. Mães e pais de santo, junto com seus filhos, celebram e cultuam Rei
Sabá em seu território, oferecendo-lhe bebidas, frutas e outras oferendas no
dia 20 de janeiro. Por essa razão, em 2002 a prefeitura do município inaugurou
o "Monumental Místico" para o Rei Sabá, acrescentando à pedra em uma
base de concreto, além de construir imagens das turcas encantadas Jarina e
Mariana. Há também a imagem de Iemanjá – em sua representação umbandista que se
popularizou no Brasil, de pele branca e vestindo azul; e finalmente, o caboclo
Zé Raimundo. Atualmente, pelas intempéries e a força das águas que singram a
região do monumento, quase todas as imagens estão quebradas, restando apenas
Iemanjá e parte de Mariana. A pedra do Rei Sabá apresenta uma marca de colagem,
tendo sido quebrada e remendada (Vergolino, 2008).
Embora a maioria dos afrorreligiosos
que conheci em Pirabas se identifiquem enquanto umbandistas, evito de utilizar
esse termo indeterminadamente, pois no caso da Amazônia, quando se fala de
umbanda, geralmente a referência não é a mesma do contexto sudestino. A umbanda
está em constante relação com o tambor de mina, a mina nagô, a pajelança, pena
e maracá e o catolicismo popular. Além do mais, a umbanda em ambiente amazônico
tem enquanto premissa a existência da encantaria e os reinos do fundo (Silva,
2014). A multiplicidade do Rei Sabá está relacionada a isso: enquanto encantado
pertence ao reino do fundo, pois Rei Sebastião, segundo algumas narrativas, se
encantara naquela região quando por lá passou. São Sebastião e Oxóssi,
respectivamente, fazem parte dessa multiplicidade por conta do dia da
comemoração de Rei Sabá ser o mesmo que celebra São Sebastião na igreja
católica. Oxóssi surge por conta da aproximação histórica entre o santo e o
orixá. De qualquer forma, como veremos, há momentos em que essas personagens se
separam, aproximam-se, ou se relacionam de formas imprevistas.
Apesar de algumas pessoas alegarem
que Rei Sabá não mora mais ali, juntamente com essas avarias, permanece a
tradição de cultuá-lo no dia 20 de janeiro, assim como o respeito e admiração
pela figura do encantado. Cheguei na cidade 17 de janeiro de 2018 para
acompanhar a festa e celebração ao Rei Sabá, e permaneci por lá até início de
fevereiro. Este pequeno texto é fruto dessa pesquisa preliminar, que pretendo
desenvolver e ampliar nos próximos meses.
Nos dias antes da festividade,
automóveis com autofalantes percorriam as ruas da cidade anunciando,
principalmente, dois eventos. O primeiro era a procissão que sairia da casa de
Mãe Rita de Oxóssi, com destino à paróquia de São João Batista. Após a missa,
aconteceria ainda um "toque" de tambor no complexo esportivo e
cultural Maria Pajé, na orla de Pirabas. Já o segundo veículo anunciava o luau
organizado pela prefeitura que aconteceria na virada do dia 19 para o 20, na
ilha da Fortaleza. Ambos os eventos eram anunciados enquanto expressão da
cultura, religiosidade e história do povo de São João de Pirabas. Jon, filho da
casa de Mãe Rita de Oxóssi, contou-me que nos anos anteriores a festividade foi
protagonizada por terreiros vindos de Belém, capital do Pará, não condizendo
com o que era vivenciado em Pirabas. Por isso, em 2018, Mãe Rita de Oxóssi e
outros pais e mães de santo se mobilizaram para que a festividade acontecesse de
maneira mais próxima ao que era praticado na cidade.
Os
autofalantes lembravam que a procissão chegaria na paróquia no final da tarde.
Aguardei na praça que fica defronte ao templo. Nesse momento conheci Paulo
Pinheiro, autor de um blog sobre
a história e cultura local, e Rovilson Souza, fotógrafo que acompanharia a
festividade. A procissão chegou perto das 19 horas, encabeçada por um carro
rebocando um aparelho de som todo enfeitado com balões vermelhos e brancos,
além de abrigar a pequena imagem de São Sebastião. O santo exibia seus
ferimentos causados por perfuração. Apoiava-se em um mastro, que em sua ponta
possuía folhas verdes. Ambos, santo e mastro, ficavam em cima de uma base em
forma de barco, também das cores branca e vermelha, cores de São Sebastião
dentro da religiosidade afro-brasileira e do catolicismo popular.
Não pude deixar de notar, também, a
conexão entre as cores do santo e da bandeira que representa o estado do Pará.
Junto de São Sebastião, a maioria vinha andando atrás, seguindo-o,
aproximadamente trinta pessoas. Outros chegaram de carro ou moto. Quase todos
estavam em vestes rituais que variavam em cores, as mulheres de saia rodada
branca ou vermelha, com blusas brancas, e os homens variando também entre as
cores do santo, embora alguns apresentassem coloração diferente. Alguns também
estavam com suas toalhas por sobre os ombros. Havia quem destacasse o verde em
suas vestes, a cor que aparece em algumas representações imagéticas de Oxóssi,
orixá que participa da multiplicidade que é Rei Sabá, conectando Rei Sebastião,
o santo e o orixá.
A missa, acompanhada pelos afrorreligiosos em sua maioria, durou
aproximadamente duas horas. Logo de início o padre definiu o momento como a
celebração das boas intenções, não somente da igreja católica, mas de todas as
religiões, igrejas e crenças. A liturgia rogou pelo bem de todos, nativos e
visitantes, que vieram de todo o Brasil para a festa do Rei Sabá. O presbítero
aproveitou a ocasião para explicar a devoção ao santo Sebastião, comentou sua
história e informou que na igreja ortodoxa é celebrado no dia 18 de janeiro e
"dia 20 pela igreja apostólica romana e as religiões
afro-brasileiras". Ainda comentou que algumas pessoas confundem São
Sebastião com Rei Sabá; porém, segundo o representante da igreja católica, eles
não são as mesmas pessoas. São Sebastião existiu e foi um personagem histórico;
Rei Sabá, entretanto, seria uma lenda relatada pelos antigos como um ser
realizador de milagres, e ele não saberia apontar a veracidade desses relatos.
O ritual católico findou-se sem a
comunhão, o que me foi ressaltado posteriormente por Pai Sival, experiente da
linha do pena e maracá, vertente da umbanda amazônica e/ou tambor de mina que
maneja os saberes da pajelança. Além de representantes de terreiros da capital
paraense e de sua região metropolitana, a missa contou com a assistência do
secretário de cultura da prefeitura, tendo em sua fala realçado o aspecto
cultural da festividade do Rei Sabá.
Pai Sival, juntamente com Mãe Rita de
Oxóssi, organizaram o toque de tambor que aconteceu, logo em seguida, na quadra
do centro cultural e esportivo Maria Pajé, fincado na orla da cidade. Os
afrorreligiosos fizeram uma roda na quadra, juntando pais e mães de santo de
terreiros visitantes, assim como os da própria cidade. Havia dois tambores,
estes foram tocados em posição levemente inclinada, apoiados entre as pernas
dos iniciados – sendo um deles Jon, apresentado anteriormente. Os tambores
estavam revestidos com tecido, um todo verde e o segundo de vermelho. A gira
foi ritualizada a partir dos toques de tambores e os cânticos puxados pelos
participantes. Microfones acoplados em caixas de som amplificavam a voz dos
cantantes. Pai Sival mencionou que aquela era a 76º edição da celebração do
sebastianismo em Pirabas, avisando que no dia posterior, logo na manhã, haveria
a concentração na fábrica da empresa de pesca Princomar, dali atravessariam
para a ilha da Fortaleza.
A chuva amazônica interrompeu a celebração apenas uma vez; esta
retornou brevemente, mas dessa vez acompanhada pelo sereno até o seu final.
Entre os tambores e maracas, os cânticos mencionaram Rei Sebastião, São
Sebastião, encantados, Oxóssi, Xangô, as turcas filhas de Rei Sabá: Mariana,
Jarina e Herondina. A gira aconteceu em um espaço utilizado pelos moradores de
Pirabas para vários fins, incluindo lazer e outros tipos de festas, como as
aparelhagens, famosas em todo o Pará. Portanto, os afrorreligiosos tiveram que
negociar sua presença ali. Antes mesmo de se iniciar a celebração, havia nos
quiosques que ficam ao lado do centro Maria Pajé alguns carros com equipamento
de aparelhagem, emitindo o som alto de músicas animadas e luzes de diversas
cores. Os donos dos carros abaixaram o som durante a celebração, embora a
música tenha retornado em algum momento da gira. Mas rapidamente o som de
aparelhagem foi suspenso, retornando apenas ao final da celebração
afro-brasileira no centro cultural Maria Pajé.
Como teria que acordar muito cedo no
outro dia, saí da festividade à meia noite. Depois me contaram, com bastante
animação, que a festividade saiu do centro cultural Maria Pajé e continuou no
terreiro de Mãe Rita de Oxóssi até o sol raiar. Rei Sabá, e toda sua
multiplicidade, foi celebrado no dia seguinte, 20 de janeiro. Esse não é o
único dia em que é vivenciado e homenageado, no entanto essa história será
contada em outros momentos, talvez por diferentes vozes, mas certamente fora do
espaço deste prelúdio. Com essa descrição, evitei generalizações apressadas,
manejando aquilo que Isabelle Stengers (2002), em diálogo com Bruno Latour
(1988), chamou de "princípio de irredução", uma proposta de recuo
diante a pretensão moderna e científica de saber e julgar (Stengers 2002).
Portanto, temas que de imediato seria tratado como sincretismo e disputas entre
campos sociais religiosos, foram descritos com cautela e diálogo com as pessoas
envolvidas no processo, principalmente pajés, razadeiras/benzedeiras, pais e
mães de santo.
Doutorando em Antropologia Social
(PPGAS/UFRGS), Mestre em Antropologia (PPGA/UFPA) e bacharel em Ciências
Sociais (UECE). É pesquisador pós-graduando do Núcleo de Estudos da Religião
(NER).
http://www.ufrgs.br/ner/index.php/estante/arquivo-a-campo/96-um-preludio-para-o-rei-saba-o-encantado-e-a-sua-multiplicidade-em-sao-joao-de-pirabas-para
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.