quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Ícone da cultura pirabense, “Rei Sabá” é tema de trabalho apresentado em universidade do sul do país.


Um prelúdio para o Rei Sabá – o encantado e a sua multiplicidade em São João de Pirabas, Pará
Por Hermes Veras NER/UFRGS


Leia na íntegra o trabalho apresentado pelo pesquisador Hermes Veras ao núcleo de estudos religiosos – NER - da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Pedra mística é constante tema de trabalhos acadêmicos
Foto: Paulinho Pinheiro
A cidade litorânea de São João de Pirabas é conhecida pela geografia afro-brasileira como umas das três moradas do encantado Rei Sebastião – comumente chamado pelas pessoas de Rei Sabá – na Amazônia (Maués, 2005). Não é raro se ouvir falar de umas dessas outras regiões, talvez a mais famosa, localizada na praia dos Lençóis, São Luís, Maranhão. Algumas pessoas que frequentam os terreiros da cidade paraense dizem que Rei Sebastião não mora mais na praia do Castelo, pertencente à ilha da Fortaleza que fica há aproximadamente 30 a 40 minutos de distância de barco com motor, via as águas do oceano atlântico entrelaçadas com o rio Pirabas.
Há relatos de que a entidade tenha se mudado para a sua morada maranhense por conta do descaso com o seu território, este consiste em uma formação rochosa que se eleva nas praias do Castelo. No lugar, uma pedra em especial se destaca, hoje já como um monumento, mas que outrora se assemelhava a um homem sentado, principalmente para quem tangenciasse o litoral. Por essa e outras razões, o Rei Sabá ficou conhecido e cultuado entre os pescadores e habitantes da ilha pertencente ao município de Pirabas (Silva, 2007). O que se sabe é que pelo menos há mais de 70 anos acontece uma peregrinação fluvial-marítima, saindo de Pirabas até a praia do Castelo. Mães e pais de santo, junto com seus filhos, celebram e cultuam Rei Sabá em seu território, oferecendo-lhe bebidas, frutas e outras oferendas no dia 20 de janeiro. Por essa razão, em 2002 a prefeitura do município inaugurou o "Monumental Místico" para o Rei Sabá, acrescentando à pedra em uma base de concreto, além de construir imagens das turcas encantadas Jarina e Mariana. Há também a imagem de Iemanjá – em sua representação umbandista que se popularizou no Brasil, de pele branca e vestindo azul; e finalmente, o caboclo Zé Raimundo. Atualmente, pelas intempéries e a força das águas que singram a região do monumento, quase todas as imagens estão quebradas, restando apenas Iemanjá e parte de Mariana. A pedra do Rei Sabá apresenta uma marca de colagem, tendo sido quebrada e remendada (Vergolino, 2008).
Embora a maioria dos afrorreligiosos que conheci em Pirabas se identifiquem enquanto umbandistas, evito de utilizar esse termo indeterminadamente, pois no caso da Amazônia, quando se fala de umbanda, geralmente a referência não é a mesma do contexto sudestino. A umbanda está em constante relação com o tambor de mina, a mina nagô, a pajelança, pena e maracá e o catolicismo popular. Além do mais, a umbanda em ambiente amazônico tem enquanto premissa a existência da encantaria e os reinos do fundo (Silva, 2014). A multiplicidade do Rei Sabá está relacionada a isso: enquanto encantado pertence ao reino do fundo, pois Rei Sebastião, segundo algumas narrativas, se encantara naquela região quando por lá passou. São Sebastião e Oxóssi, respectivamente, fazem parte dessa multiplicidade por conta do dia da comemoração de Rei Sabá ser o mesmo que celebra São Sebastião na igreja católica. Oxóssi surge por conta da aproximação histórica entre o santo e o orixá. De qualquer forma, como veremos, há momentos em que essas personagens se separam, aproximam-se, ou se relacionam de formas imprevistas.
Apesar de algumas pessoas alegarem que Rei Sabá não mora mais ali, juntamente com essas avarias, permanece a tradição de cultuá-lo no dia 20 de janeiro, assim como o respeito e admiração pela figura do encantado. Cheguei na cidade 17 de janeiro de 2018 para acompanhar a festa e celebração ao Rei Sabá, e permaneci por lá até início de fevereiro. Este pequeno texto é fruto dessa pesquisa preliminar, que pretendo desenvolver e ampliar nos próximos meses.
Nos dias antes da festividade, automóveis com autofalantes percorriam as ruas da cidade anunciando, principalmente, dois eventos. O primeiro era a procissão que sairia da casa de Mãe Rita de Oxóssi, com destino à paróquia de São João Batista. Após a missa, aconteceria ainda um "toque" de tambor no complexo esportivo e cultural Maria Pajé, na orla de Pirabas. Já o segundo veículo anunciava o luau organizado pela prefeitura que aconteceria na virada do dia 19 para o 20, na ilha da Fortaleza. Ambos os eventos eram anunciados enquanto expressão da cultura, religiosidade e história do povo de São João de Pirabas. Jon, filho da casa de Mãe Rita de Oxóssi, contou-me que nos anos anteriores a festividade foi protagonizada por terreiros vindos de Belém, capital do Pará, não condizendo com o que era vivenciado em Pirabas. Por isso, em 2018, Mãe Rita de Oxóssi e outros pais e mães de santo se mobilizaram para que a festividade acontecesse de maneira mais próxima ao que era praticado na cidade.
Os autofalantes lembravam que a procissão chegaria na paróquia no final da tarde. Aguardei na praça que fica defronte ao templo. Nesse momento conheci Paulo Pinheiro, autor de um blog sobre a história e cultura local, e Rovilson Souza, fotógrafo que acompanharia a festividade. A procissão chegou perto das 19 horas, encabeçada por um carro rebocando um aparelho de som todo enfeitado com balões vermelhos e brancos, além de abrigar a pequena imagem de São Sebastião. O santo exibia seus ferimentos causados por perfuração. Apoiava-se em um mastro, que em sua ponta possuía folhas verdes. Ambos, santo e mastro, ficavam em cima de uma base em forma de barco, também das cores branca e vermelha, cores de São Sebastião dentro da religiosidade afro-brasileira e do catolicismo popular.
Não pude deixar de notar, também, a conexão entre as cores do santo e da bandeira que representa o estado do Pará. Junto de São Sebastião, a maioria vinha andando atrás, seguindo-o, aproximadamente trinta pessoas. Outros chegaram de carro ou moto. Quase todos estavam em vestes rituais que variavam em cores, as mulheres de saia rodada branca ou vermelha, com blusas brancas, e os homens variando também entre as cores do santo, embora alguns apresentassem coloração diferente. Alguns também estavam com suas toalhas por sobre os ombros. Havia quem destacasse o verde em suas vestes, a cor que aparece em algumas representações imagéticas de Oxóssi, orixá que participa da multiplicidade que é Rei Sabá, conectando Rei Sebastião, o santo e o orixá.
A missa, acompanhada pelos afrorreligiosos em sua maioria, durou aproximadamente duas horas. Logo de início o padre definiu o momento como a celebração das boas intenções, não somente da igreja católica, mas de todas as religiões, igrejas e crenças. A liturgia rogou pelo bem de todos, nativos e visitantes, que vieram de todo o Brasil para a festa do Rei Sabá. O presbítero aproveitou a ocasião para explicar a devoção ao santo Sebastião, comentou sua história e informou que na igreja ortodoxa é celebrado no dia 18 de janeiro e "dia 20 pela igreja apostólica romana e as religiões afro-brasileiras". Ainda comentou que algumas pessoas confundem São Sebastião com Rei Sabá; porém, segundo o representante da igreja católica, eles não são as mesmas pessoas. São Sebastião existiu e foi um personagem histórico; Rei Sabá, entretanto, seria uma lenda relatada pelos antigos como um ser realizador de milagres, e ele não saberia apontar a veracidade desses relatos.
O ritual católico findou-se sem a comunhão, o que me foi ressaltado posteriormente por Pai Sival, experiente da linha do pena e maracá, vertente da umbanda amazônica e/ou tambor de mina que maneja os saberes da pajelança. Além de representantes de terreiros da capital paraense e de sua região metropolitana, a missa contou com a assistência do secretário de cultura da prefeitura, tendo em sua fala realçado o aspecto cultural da festividade do Rei Sabá.
Pai Sival, juntamente com Mãe Rita de Oxóssi, organizaram o toque de tambor que aconteceu, logo em seguida, na quadra do centro cultural e esportivo Maria Pajé, fincado na orla da cidade. Os afrorreligiosos fizeram uma roda na quadra, juntando pais e mães de santo de terreiros visitantes, assim como os da própria cidade. Havia dois tambores, estes foram tocados em posição levemente inclinada, apoiados entre as pernas dos iniciados – sendo um deles Jon, apresentado anteriormente. Os tambores estavam revestidos com tecido, um todo verde e o segundo de vermelho. A gira foi ritualizada a partir dos toques de tambores e os cânticos puxados pelos participantes. Microfones acoplados em caixas de som amplificavam a voz dos cantantes. Pai Sival mencionou que aquela era a 76º edição da celebração do sebastianismo em Pirabas, avisando que no dia posterior, logo na manhã, haveria a concentração na fábrica da empresa de pesca Princomar, dali atravessariam para a ilha da Fortaleza.
A chuva amazônica interrompeu a celebração apenas uma vez; esta retornou brevemente, mas dessa vez acompanhada pelo sereno até o seu final. Entre os tambores e maracas, os cânticos mencionaram Rei Sebastião, São Sebastião, encantados, Oxóssi, Xangô, as turcas filhas de Rei Sabá: Mariana, Jarina e Herondina. A gira aconteceu em um espaço utilizado pelos moradores de Pirabas para vários fins, incluindo lazer e outros tipos de festas, como as aparelhagens, famosas em todo o Pará. Portanto, os afrorreligiosos tiveram que negociar sua presença ali. Antes mesmo de se iniciar a celebração, havia nos quiosques que ficam ao lado do centro Maria Pajé alguns carros com equipamento de aparelhagem, emitindo o som alto de músicas animadas e luzes de diversas cores. Os donos dos carros abaixaram o som durante a celebração, embora a música tenha retornado em algum momento da gira. Mas rapidamente o som de aparelhagem foi suspenso, retornando apenas ao final da celebração afro-brasileira no centro cultural Maria Pajé.
Como teria que acordar muito cedo no outro dia, saí da festividade à meia noite. Depois me contaram, com bastante animação, que a festividade saiu do centro cultural Maria Pajé e continuou no terreiro de Mãe Rita de Oxóssi até o sol raiar. Rei Sabá, e toda sua multiplicidade, foi celebrado no dia seguinte, 20 de janeiro. Esse não é o único dia em que é vivenciado e homenageado, no entanto essa história será contada em outros momentos, talvez por diferentes vozes, mas certamente fora do espaço deste prelúdio. Com essa descrição, evitei generalizações apressadas, manejando aquilo que Isabelle Stengers (2002), em diálogo com Bruno Latour (1988), chamou de "princípio de irredução", uma proposta de recuo diante a pretensão moderna e científica de saber e julgar (Stengers 2002). Portanto, temas que de imediato seria tratado como sincretismo e disputas entre campos sociais religiosos, foram descritos com cautela e diálogo com as pessoas envolvidas no processo, principalmente pajés, razadeiras/benzedeiras, pais e mães de santo.
Hermes de Sousa Veras
Doutorando em Antropologia Social (PPGAS/UFRGS), Mestre em Antropologia (PPGA/UFPA) e bacharel em Ciências Sociais (UECE). É pesquisador pós-graduando do Núcleo de Estudos da Religião (NER).
 http://www.ufrgs.br/ner/index.php/estante/arquivo-a-campo/96-um-preludio-para-o-rei-saba-o-encantado-e-a-sua-multiplicidade-em-sao-joao-de-pirabas-para



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